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Critérios do Cânon

Critérios do Cânon

Por Rômulo Monteiro
Existem temas que vez por outra surgem em nossas discussões sobre Bíblia. Um deles é o cânon. O assunto pode ser desenvolvido por inúmeras perspectivas. No caso do artigo que segue, desenvolverei a questão dos "critérios de canonicidade".

Antes de considerar os critérios, torna-se necessária uma palavra sobre a legitimidade ou inautenticidade dos mesmos: 1) Todos os critérios são considerados inválidos caso sejam absolutizados. Nenhum critério sozinho determina a aceitação de um livro no cânon. 2) Os critérios devem possuir caráter eliminatório. Ou seja, devem ser os mais específicos possíveis a fim de eliminar uma obra qualquer e reconhecer (não determinar) uma obra singular. 

CRITÉRIOS INVÁLIDOS.

ESCRITOS EM HEBRAICO OU GREGO.

Tanto os hebreus quanto a igreja primitiva possuíam uma vasta literatura em ambas as línguas. Nesta havia livros sagrados e selecionados. A despeito do número de livros escritos em grego e hebraico, o tratamento dado a eles não era idêntico. Harris nos fornece um exemplo:

Referencias aos extensos índices de Rabin na sua edição de Fragmentos Zadoquitas mostrará que embora as Escrituras canônicas sejam citadas repetidamente com frases que determinam autoridade tais como "está escrito", "Deus disse", "como falou por mão do profeta", etc. nunca sequer uma vez são os livros apócrifos citados assim.

Soma-se a isso o fato de que existem muitos livros escritos em hebraico e grego que são fontes de discordância direta com o material bíblico. O apócrifo Macabeus, por exemplo, incentiva a oração pelos mortos. Pode-se ainda assegurar que há seções de alguns livros aceitos no cânon sagrado que não foram escritos em hebraico (Dn. 2.4b-7.28 e Ed. 4.8-6.18; 7.12-26).

ANTIGUIDADE.

Geisler e Nix combatem esse critério com as seguintes palavras:

[…] muitos livros velhíssimos, como o livro dos justos e os livros das guerras do Senhor […] nunca foram aceitos no cânon. […] há evidências de que os livros canônicos foram introduzidos no cânon imediatamente, e não depois de haverem envelhecidos. É o caso dos livros de Moisés […], de Jeremias […] e dos escritos do Novo Testamento produzidos por Paulo.

CONCORDÂNCIA COM A TORÁ

Contra esse critério temos o fato de que muitos textos que estavam de acordo com a Torá não foram aceitos como canônicos. Exemplos claros de literaturas aceitas como concordante com a Torá são o Midrash e o Talmude. Além disso, Geisler e Nix nos alertam para o fato de que tal concordância é insatisfatória "porque não explica o que foi que determinou a canonicidade da Torá".

ACEITO POR CONCÍLIO.

A inautenticidade desse critério se dá primeiramente pela própria natureza autoritativa da obra. Como um concílio poderia ter autoridade para revelar quais seriam os livros divinos? Dessa forma o concílio teria a palavra final – canônica. A igreja não pode julgar as Escrituras. Piper nos lembra que "uma das descobertas básicas dos reformadores foi que nem a autoridade, nem a interpretação das Escrituras deriva da igreja".

Em segundo lugar, no tocante ao Antigo Testamento, "não há evidência de um apelo a um concílio desse tipo para estabelecer a canonicidade de um livro". O caso de Jamnia, "não foi um concílio e […] não promulgou nenhuma decisão". "Quando os rabis de Jamnia consideraram Eclesiastes, eles apelaram às decisões de rabis anteriores, não a um concílio".

Quanto ao Novo Testamento, usaremos as palavras de Herman Ridderbos, "Um julgamento histórico não pode ser a única e final para a aceitação do Novo Testamento como canônico pela igreja. Isso significaria que a igreja basearia sua fé em resultado de investigação histórica". Sawyer vai além ao assegurar que "a igreja antiga nunca chegou a uma decisão fechada e consciente quanto a extensão do cânon". E continua: "O Novo Testamento não foi fechado no quarto século". Para Sawyers, os concílios que são geralmente citados (e.g., Hipona e Cartago) foram locais.

Ainda sobre as limitações dos concílios Elert nos alerta para o fato de que "O cânone foi limitado em conexão somente com uma decisão a respeito da Antilegômina, [sic] […] Com respeito à Homologoumena o sínodo não poderia resolver mais a questão, já que era pressuposto tanto por ele quanto por Atanásio".

Sobre o conceito de cânon anterior aos concílios ficamos com as palavras de Justus Gonzalez:

[…] o conceito de cânon ou de uma lista fixa de livros cristãos inspirados, a origem da noção de existência de tais livros é muito anterior a Marcião. Desde sua origem, a igreja adotou o Antigo Testamento como Escritura; e desde uma data muito antiga, havia escritos cristãos que eram usados como Escritura juntamente com o Antigo Testamento.

CRITÉRIOS VÁLIDOS

Os estudiosos que lutam com esses critérios se dividem basicamente em dois grupos. De um lado estão aqueles que enfatizam a autoridade do conteúdo da obra ou do autor, e do outro, os que enfatizam a autoridade da comunidade receptora.

AUTORIDADE DE UMA LINHAGEM PROFÉTICA (APOSTÓLICA).

Para aqueles que enfatizam a autoridade dos autores; o que não era visto como profético não era visto como Palavra de Deus. Moisés é o protótipo de todos os demais profetas. Harris esclarece: 

Moisés, o grande precursor da linha profética, especificou testes a serem aplicados para determinar a realidade a autenticidade da profecia. Devemos considerar não só os testes claros descritos em Deuteronômio 13 e 18 e o poder de operar milagres (Êx 4.1-9, Is 38.7-8), mas também o grande modelo da verdadeira profecia encontrado nos escritos do próprio Moisés, qualquer coisa que não estiver de acordo com a fonte da verdade era ipso facto um profecia falsa. Mas quando todos os testes eram aplicados e o profeta era reconhecidamente visto como verdadeiro, suas palavras e seus escritos eram recebidos logo pelos fiéis como sendo a Palavra de Deus, isto é, canônicos.

Assim, para Harris, e todos os outros que enfatizam a autoria, "o último na tradição não é um concílio, e sim um homem a quem Deus falou – um profeta". Por profeta entenda-se "todos os falam o que o Senhor os entregou". Dessa forma, Davi, Josué, Salomão e outros são igualmente considerados profetas. Para aqueles que entendem profeta como ofício, as palavras de Harris podem ajudar: "Não encontramos menção de uma cerimônia para a iniciação de um profeta. Ele não era coroado como um rei, nem consagrado como um sacerdote. A unção dele era espiritual e divina".

Voltando a figura de Moisés, "[…] o antigo Israel cria que Moisés o tinha escrito como porta-voz de Deus. Não há voz discordante. E será que não ficou claro que precisamente essa a razão pela qual o antigo Israel o recebeu como possuindo autoridade, isto é, como canônico?".

"O princípio de canonização do Pentateuco, que orientou o Israel antigo, até onde temos qualquer evidência que seja é: Ele veio mesmo do grane porta-voz de Deus, Moisés?". Começando em Moisés, pois, "o cânon cresceu à medida que os profetas sucediam um ao outro no seu ministério". Os profetas que seguiram Moisés foram avaliados pelo próprio, pois o próprio Moisés forneceu testes para avaliação dos profetas que o seguiriam (cf. Dt. 13.1-5; 18.20-22).

Deixando Moisés, mas ainda na tônica da autoridade autoral, Warfield nos lembra que a questão da autoridade apostólica não é uma referência a produção do texto, mas "a imposição pelos apóstolos como lei". Em outras palavras "sanção ou chancela apostólica". A sutileza de Warfield permite a inclusão de livros como Lucas, Marcos, Tiago e Hebreus que não foram escritos por profetas e/ou apóstolos

AUTORIDADE INERENTE (CONTEÚDO).

Para Ladd: 

Em certo sentido, os escritos canônicos são semelhantes a outros documentos antigos pelo fato de preservarem os produtos históricos e literários dos homens que viveram em um ambiente histórico distante do nosso, visando atender a objetivos específicos imediatos. Contudo, há uma diferença fundamental: os escritos das Escrituras canônicas participam do caráter da história sagrada. […] falta aos livros não-canônicos o senso de história sagrada encontrado nos livros canônicos.

Seguindo Ladd, Hans von Campenhausen assegura que "é o conteúdo do testemunho profético ou apostólico que é decisivo". O força desse critério é mais intensa no seu aspecto negativo, ou seja, na eliminação de obras que em seu conteúdo não reivindicam autoridade profética ou possuem erros geográficos, cronológicos, históricos, bem como discrepâncias teológicas.

TESTEMUNHO DA COMUNIDADE.

Por testemunho da comunidade não se está afirmando o mesmo que aceitação de um concílio posterior. Antes, faz-se referência ao fato de que a palavra dos profetas se dava na comunidade e esta, por sua vez, tinha um papel de testemunho relevante. As considerações de Robert Vasholz nos ajudam: 

Predições de curto prazo permitiam a um verdadeiro profeta se estabelecer visto que muitas destas predições foram testemunhadas em público e conhecidas de muitos (cf. 1Re. 13.11; 22.10; 2Re 3.12; 5.2-3; 6.12). […] Os profetas não era um grupo desconhecido ou clandestino cujos feitos recebiam pouco reconhecimento. Falhar em ter suas predições realizadas certamente impugnaria suas reputações.

O aspecto negativo desse critério também tem sua importância. Os apócrifos nunca receberam o testemunho positivo quanto à sua autoridade canônica. Esse "rejeição" se estende até Cristo e seus apóstolos.

AVALIAÇÃO SOBRE A VALIDADE DOS CRITÉRIOS.

A INTERDEPENDÊNCIA DOS CRITÉRIOS. 

Não há obra literária ligada à temática do cânon que use um único critério de autenticação. Geisler e Nix, por exemplo, propõem cinco princípios usados pela comunidade. São eles: 1) Autoridade do livro; 2) Autoria profética; 3) Confiabilidade; 4) Natureza dinâmica; 5) A aceitação do livro. A despeito do uso de vários critérios, muitos estudiosos defendem um "critério primário". No caso da igreja católica ou da teologia canônica, a comunidade seria o "critério primário". O protestantismo fica divido. Ora o critério primário fica na autoridade autoral, ora no conteúdo. O fato é que não há um único critério primário; antes, uma dinâmica entre eles. Segue a argumentação:

Quando Harris chama para Moisés (ou à autoridade profética) o critério final, não se pode esquecer que essa mesma autoridade se dava por sinais junto à comunidade. É fato que ela (a comunidade) não determinava, mas não podemos negar sua importância. Além disso, como nem tudo que o profeta ou apóstolo escrevia era necessariamente e/ou automaticamente inspirado, era necessário uma análise do conteúdo que revelava um apelo autoritativo divino além de outros sinais esperado de uma obra divina como coerência teológica, histórica e geográfica. Foi na dinâmica desses três elementos (critérios) que a Escritura chegou até nós.

Mais do que a dinâmica profeta-povo-conteúdo; há uma interdependência entre eles. O fato é que não existe profeta sem sinais proféticos que o chancelem diante do povo. Da mesma forma um conteúdo destituído de autoridade profética não passa de bons conselhos.

Não há tensão entre a autoridade da igreja (comunidade receptora) e os autores (conteúdo). Autoridade externa (igreja) ou interna (autor/conteúdo). O que temos é interdependência.

Findo com as palavras de Alister Mcgrath:

Tem havido recentemente um progressivo reconhecimento do fato de que a comunidade da fé e as Escrituras, o povo e o livro coexistem mutuamente, e que as tentativas de traçar nítidas linhas divisórias entre ambos são um tanto quanto arbitrárias. O cânon das Escrituras pode ser considerado como algo quer surgiu de uma forma orgânica, a partir de uma comunidade de fé já comprometida em usá-la e respeitá-lo.

CRITÉRIOS A POSTERIORI:

Se seção anterior nos esclarece sobre a relação interdependente dos critérios, essa nos alerta para as nossas limitações em reconhecer esses critérios. 

Todos os critérios contribuem para nossa convicção quanto à chegada das Escrituras até nossos dias, nenhuma delas, porém, responde completamente a questão, pois a todos os critérios são a posteriori. As palavras de Ridderbos esclarecem: 

Como suas artificialidades indicam, esses argumentos são a posteriori em caráter. Sustentar que igreja foi levada a aceitar esses escritos por tais criteria é ir longe demais pois estamos falando de criteria canonicitais. É bastante claro que nossas tentativas cobrir com argumentos o que já foi fixado por muito tempo serão mais ou menos bem sucedidas.

Uma das implicações em reconhecer o caráter a posteriori dos critérios de canonicidade é que elas podem estabelecer um cânon acima do cânon entrando assim em conflito com a natureza do cânon em si. Se basearmos nossa crença no cânon em outro cânon, o primeiro perdera o status de cânon. Assim, os dados históricos e os outros critérios são auxiliares para entendermos o processo porque já partimos do fato de ser a Palavra de Deus. 

Não podemos esquecer que se a Bíblia é o que afirma ser, ela é auto-autenticante; não há nada fora dela mesma que possa avaliá-la. Nas palavras de Grier: "A apologética autopística pressupõe que a Bíblia é verdade e então argumenta a partir da Bíblia pra mostra que ela (a Bíblia) é autoritativa". E ainda: "Todo sistema tem um ponto de partida auto-referencial que não pode ser validado por uma autoridade". Autoridades últimas não podem ser validadas por apelos a outras autoridades, pois seu caráter último é obviamente perdido.

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