Verdade e Pluralidade no Novo Testamento
Por AUGUSTUS NICODEMUS
Com a chegada da nova hermenêutica na academia cristã, tornou-se corrente entre os estudiosos que não existe uma única leitura válida de qualquer passagem da Bíblia, mas muitas. Em decorrência, é dito que também não se pode fazer afirmações teológicas que sejam consideradas como verdadeiras e válidas, visto que toda declaração teológica é construída a partir de um método hermenêutico condicionado ao tempo e à cultura.
Assim, seriam as elaborações doutrinárias tradicionais da Igreja Cristã. É necessário que se aceite a pluralidade das expressões teológicas sem se pretender impor um sistema teológico sobre os demais.
A conclusão do argumento é que não se pode falar em verdade teológica, mas em pluralidade teológica. E a postura mais adequada a esta visão é a do inclusivismo eclético, que propõe a plena convivência tolerante entre as mais variadas correntes teológicas cristãs e evangélicas, ainda que se contradigam abertamente.
Creio que este assunto deve ser abordado a partir de nossas raízes apostólicas. Talvez se perguntarmos como os apóstolos e demais autores do Novo Testamento lidaram, em sua época, com interpretações divergentes da pessoa e da obra de Jesus Cristo encontremos uma postura para a verdade e a pluralidade que seja realmente cristã.
Uma leitura, ainda que superficial, dos escritos do Novo Testamento traz várias evidências de que seus autores criam que Deus havia revelado um corpo doutrinário definido o bastante para poder caracterizar como falsos e humanos ensinamentos que fossem divergentes. Mencionamos algumas delas.
1. O Surgimento dos Escritos do Novo Testamento
Boa parte da literatura neo-testamentária foi produzida em reação à invasão de falsos ensinamentos nas primeiras comunidades cristãs. Em resposta à propagação do erro, os apóstolos e seus associados produziram material que se destinava a expô-lo, refutá-lo e a instruir e fortalecer os crentes na verdade do Evangelho.
O Evangelho de João, por exemplo, cujo propósito declarado é o de confirmar os leitores na fé em Jesus Cristo (João 20.30-31), deve ter sido provocado por alguma situação de cunho doutrinário que exigia tal confirmação. Várias cartas de Paulo também foram escritas em resposta ao desenvolvimento do erro doutrinário em comunidades por ele fundadas.
A carta aos Gálatas foi escrita para combater um falso ensino divulgado por oponentes seus sobre as condições pelas quais os crentes gentios poderiam ser aceitos na Igreja. A carta aos Colossenses foi escrita para combater um movimento que havia se infiltrado na igreja de Colossos, que veio a ficar conhecido como a heresia de Colossos. A segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses foi escrita, entre outras coisas, para corrigir um falso conceito escatológico relacionado com a parousia. Além de outros propósitos gerais, Paulo escreveu 1 Timóteo para instruir Timóteo quanto a uma heresia que havia se instalado na igreja de Éfeso, que provavelmente é o mesmo erro combatido em 2 Timóteo e Tito.
É evidente que Paulo não considerava a perspectiva dos judaizantes da Galácia, quanto à salvação pelas obras da lei, como sendo uma interpretação alternativa e válida. Também não considerava a teologia dos mestres de Colossos como um enriquecimento para a doutrina cristã, apresentando um outro ponto de vista válido sobre Cristo e sobre a vida cristã. Igualmente, não parece considerar que as doutrinas que estavam sendo disseminadas em Éfeso e Creta por falsos mestres eram maneiras diferentes, válidas e complementares de se ver o Cristianismo. Na realidade, o apóstolo considera estas formas diferentes de Cristianismo como falsas, perigosas e contrárias à verdade do Evangelho.
2. As Denúncias contra Falsos Mestres e Profetas
Não podemos negar que os escritores do Novo Testamento demonstram tolerância para com os crentes que por algum motivo abraçaram desvios práticos decorrentes de erros teológicos. O melhor exemplo disto é a primeira carta de Paulo aos Coríntios. Ao abordar as irregularidades daquela igreja, o apóstolo trata os seus membros de forma bastante tolerante, considerando-os como irmãos em Cristo e como igreja de Deus, muito embora tenha entregado um incestuoso a Satanás e declarado dignos de castigo os que participassem erroneamente da Ceia (1 Coríntios 11).
Em oposição à tolerância para com os novos convertidos e desavisados, os escritores do Novo Testamento demonstram uma profunda resistência ao erro teológico divulgado por mestres. Não podiam ficar silenciosos diante do crescimento dos mesmos nas comunidades cristãs. Assim, tomaram da pena para escrever, denunciando, alertando e encorajando.
O tom dos autores bíblicos quando tratam de desvios do corpo doutrinário recebido é de urgência, preocupação e de alerta. Não há concessão, tolerância ou complacência. A diferença entre as duas atitudes é que, quando se tratava de erros práticos cometidos por crentes, os escritores do Novo Testamento adotam uma abordagem tolerante e pastoral.
Mas, quando se tratava de ensinamentos de mestres que se afastavam do padrão doutrinário recebido, a atitude passava a ser de inflexibilidade. Os apóstolos tratavam com paciência desvios práticos no culto e mau uso dos dons espirituais (o caso de Corinto), mas rejeitavam veementemente o que determinados mestres ensinavam, como a salvação pelas obras da Lei (Gálatas), negação da ressurreição dos mortos (1 Coríntios 15), ensinamentos estranhos sobre a pessoa de Cristo (Colossenses e 1 João), antinomianismo ou barateamento da graça (2 Pedro e Judas).
3. As Exortações para que a Sã Doutrina Seja Preservada
O apóstolo Paulo faz referência à "sã doutrina" nas Pastorais, uma clara referência a este corpo doutrinário recebido pela Igreja, o qual funciona como paradigma do trabalho pastoral e das questões doutrinárias, em oposição aos falsos ensinamentos (1 Timóteo 1.10; 2 Timóteo 4.3; Tito 2.1; cf. "boa doutrina", 1 Timóteo 4.6; "sãs palavras", 1 Timóteo 6.3; 2 Timóteo 1.13). O emprego do termo doutrina, portanto, aponta para a consciência dos autores do Novo Testamento de que havia um conjunto de verdades reveladas que formavam um conjunto definido, que teve seu início no ministério de Cristo e que foi confiado à Igreja mediante os apóstolos.
Doutrina é verdade transmitida de forma autoritativa e recebida em confiança. Os escritores do Novo Testamento também percebiam que a Igreja não somente era a depositária da revelação de Deus, a sã doutrina, mas também a responsável por preservá-la. Paulo considera a Igreja como sendo "coluna e baluarte da verdade" (1 Timóteo 3.15). A tarefa de guardar a verdade era dos cristãos em geral, como Judas escreve "Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Judas 3).
Paulo determina aos crentes de Filipos que "preservem" a palavra da vida, uma referência ao ensinamento que lhes havia transmitido (Filipenses 2.16). Porém, era primeiramente um encargo dos pastores e presbíteros fiéis, cuja responsabilidade seria de defender a verdade e combater o erro.
Assim, além de denunciar os falsos mestres e suas idéias, os escritores do Novo Testamento também ensinam que os cristãos – especialmente os pastores e presbíteros – deveriam zelar e preservar o conjunto de verdades reveladas que eles haviam recebido através dos apóstolos, evitando que as mesmas fossem corrompidas pelos erros velhos e novos. Muito embora usado de forma pejorativa em alguns círculos, o termo "guardiões da sã doutrina" cabe perfeitamente neste contexto para definir aquilo que os escritores inspirados desejavam que os cristãos fossem.
4. O Conceito de Apostasia
Uma outra evidência de que os autores do Novo Testamento trabalhavam com o conceito de um corpo doutrinário definido é a consciência que demonstram da realidade da apostasia. Apostatar, no Novo Testamento, é afastar-se de Deus como resultado de uma mudança de pensamento, e levantar-se em rebelião aberta contra Ele e contra a sua verdade revelada, com o objetivo de pervertê-la.
Os escritores do Novo Testamento continuamente advertem os crentes quanto aos perigos da apostasia. A presença do conceito de apostasia nos seus escritos por si só depõe eloqüentemente a favor da idéia que os escritores do Novo Testamento operavam a partir da convicção de que havia verdades fixas, desviando-se das quais as pessoas colocavam em perigo sua própria alma.
Em suas cartas, Paulo freqüentemente trata do assunto. Aos Tessalonicenses, por exemplo, Paulo relembra o surgimento da apostasia, substanciada na aparição do anticristo, precedendo o fim (2 Tessalonicenses 2.3). O apóstolo descreve este evento futuro em termos de um desvio e rebelião contra a verdade. Note as palavras e expressões destacadas: "Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com todo engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos. É por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira" (2 Tessalonicenses 2.9-11).
O conceito de apostasia ocorre também em outros autores. A carta aos Hebreus parece ter sido escrita exatamente para impedir a apostasia de seus destinatários. Tiago também menciona cristãos que se desviaram da verdade e que correm o risco da morte da alma (Tiago 5.19). João faz uma distinção entre o pecado não para a morte e o pecado para a morte (1 João 5.16-17), que consistia no abandono da doutrina apostólica para seguir o ensinamento dos mestres gnósticos que estavam se infiltrando nas comunidades da Ásia (1 João 2.18-26; 4.1-6).
Os exemplos acima demonstram que os autores bíblicos trabalhavam a partir de um sistema doutrinário referencial, que permitia advertir contra a apostasia. Por definição, só pode haver apostasia se existir um referencial doutrinário, pelo qual se possa aferir se há desvio ou rebelião. Se não havia um sistema doutrinário revelado, definido e autoritativo nos tempos da Igreja apostólica, também não poderia haver desvios, deserções, rebeliões. Tais casos seriam interpretados somente como variações e complementações do ensinamento de Jesus e dos apóstolos.
5. A interpretação das Escrituras do Antigo Testamento
Mencionaremos brevemente ainda um fator, que é o uso que os escritores do Novo Testamento fazem das Escrituras do Antigo Testamento. Eles consideravam o Antigo Testamento como sendo a inspirada Palavra de Deus e usam-na abundantemente em seus escritos, via de regra, com o propósito de fundamentar os seus ensinamentos.
Dois pontos são relevantes aqui. O primeiro deles é que os escritores do Novo Testamento consideravam a sua interpretação do Antigo Testamento correta e a dos judeus errada. Isto teve início com o próprio Jesus, que corrigiu a interpretação tradicional da Lei feita pelos fariseus (Mateus 5.21-22, 27-28, 33-34, 38-39, 43-44), denunciou a interpretação deles como sendo uma distorção da Palavra de Deus (Mateus 15.1-9), acusou-os de desconhecer as Escrituras (Mateus 15.29) e de torcer o sentido delas em benefício próprio (Mateus 23.4, 16-22).
O segundo ponto é que havia vários outros grupos e indivíduos interpretando o Antigo Testamento na época em que o Novo Testamento foi formado. Os essênios tinham elaborado sua própria interpretação da Lei e dos Profetas e escrito diversos comentários sobre livros do Antigo Testamento. Havia outros judeus que interpretavam o Antigo Testamento a partir de suas convicções apocalípticas, que incluíam pessimismo quanto ao mundo presente, o irromper súbito, catastrófico e inesperado do Reino de Deus.
Eles mesmos produziram literatura que era conhecida na época em que o Novo Testamento foi escrito, como por exemplo Enoque, Assunção de Moisés, 4 Esdras. Os rabinos também tinham seu próprio sistema interpretativo substanciado na tradição oral, que remontava ao tempo de Esdras. Filo de Alexandria, anos antes dos apóstolos, havia escrito comentários sobre o Antigo Testamento, especialmente sobre Gênesis, usando um sistema de interpretação definitivamente alegórico e comprometido com o platonismo.
Todas estas interpretações eram conhecidas e correntes no mundo em que os primeiros cristãos viveram. Entretanto, se distanciaram de todas elas, por considerarem-nas como interpretações ilegítimas das Escrituras, visto que não partiam da chave hermenêutica que destrancava o sentido delas, que era Cristo.
Concluindo, transparece das evidências acima que não faz sentido dizer que os apóstolos e demais autores do Novo Testamento eram pluralistas ou inclusivistas, mesmo no sentido mais brando e suave dos termos. Eles não entendiam que as teologias dos judaizantes, gnósticos, nicolaitas, espirituais, latoeiros, etc., eram interpretações complementares e válidas da pessoa e da obra de Cristo. Combateram-nas veementemente. Tal abordagem ao conceito de verdade e pluralidade deveria servir de modelo para uma postura cristã moderna quanto à diversidade teológica que grassa em nossa academia.
Fonte: www.teologiabrasileira.com.br
Assim, seriam as elaborações doutrinárias tradicionais da Igreja Cristã. É necessário que se aceite a pluralidade das expressões teológicas sem se pretender impor um sistema teológico sobre os demais.
A conclusão do argumento é que não se pode falar em verdade teológica, mas em pluralidade teológica. E a postura mais adequada a esta visão é a do inclusivismo eclético, que propõe a plena convivência tolerante entre as mais variadas correntes teológicas cristãs e evangélicas, ainda que se contradigam abertamente.
Creio que este assunto deve ser abordado a partir de nossas raízes apostólicas. Talvez se perguntarmos como os apóstolos e demais autores do Novo Testamento lidaram, em sua época, com interpretações divergentes da pessoa e da obra de Jesus Cristo encontremos uma postura para a verdade e a pluralidade que seja realmente cristã.
Uma leitura, ainda que superficial, dos escritos do Novo Testamento traz várias evidências de que seus autores criam que Deus havia revelado um corpo doutrinário definido o bastante para poder caracterizar como falsos e humanos ensinamentos que fossem divergentes. Mencionamos algumas delas.
1. O Surgimento dos Escritos do Novo Testamento
Boa parte da literatura neo-testamentária foi produzida em reação à invasão de falsos ensinamentos nas primeiras comunidades cristãs. Em resposta à propagação do erro, os apóstolos e seus associados produziram material que se destinava a expô-lo, refutá-lo e a instruir e fortalecer os crentes na verdade do Evangelho.
O Evangelho de João, por exemplo, cujo propósito declarado é o de confirmar os leitores na fé em Jesus Cristo (João 20.30-31), deve ter sido provocado por alguma situação de cunho doutrinário que exigia tal confirmação. Várias cartas de Paulo também foram escritas em resposta ao desenvolvimento do erro doutrinário em comunidades por ele fundadas.
A carta aos Gálatas foi escrita para combater um falso ensino divulgado por oponentes seus sobre as condições pelas quais os crentes gentios poderiam ser aceitos na Igreja. A carta aos Colossenses foi escrita para combater um movimento que havia se infiltrado na igreja de Colossos, que veio a ficar conhecido como a heresia de Colossos. A segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses foi escrita, entre outras coisas, para corrigir um falso conceito escatológico relacionado com a parousia. Além de outros propósitos gerais, Paulo escreveu 1 Timóteo para instruir Timóteo quanto a uma heresia que havia se instalado na igreja de Éfeso, que provavelmente é o mesmo erro combatido em 2 Timóteo e Tito.
É evidente que Paulo não considerava a perspectiva dos judaizantes da Galácia, quanto à salvação pelas obras da lei, como sendo uma interpretação alternativa e válida. Também não considerava a teologia dos mestres de Colossos como um enriquecimento para a doutrina cristã, apresentando um outro ponto de vista válido sobre Cristo e sobre a vida cristã. Igualmente, não parece considerar que as doutrinas que estavam sendo disseminadas em Éfeso e Creta por falsos mestres eram maneiras diferentes, válidas e complementares de se ver o Cristianismo. Na realidade, o apóstolo considera estas formas diferentes de Cristianismo como falsas, perigosas e contrárias à verdade do Evangelho.
2. As Denúncias contra Falsos Mestres e Profetas
Não podemos negar que os escritores do Novo Testamento demonstram tolerância para com os crentes que por algum motivo abraçaram desvios práticos decorrentes de erros teológicos. O melhor exemplo disto é a primeira carta de Paulo aos Coríntios. Ao abordar as irregularidades daquela igreja, o apóstolo trata os seus membros de forma bastante tolerante, considerando-os como irmãos em Cristo e como igreja de Deus, muito embora tenha entregado um incestuoso a Satanás e declarado dignos de castigo os que participassem erroneamente da Ceia (1 Coríntios 11).
Em oposição à tolerância para com os novos convertidos e desavisados, os escritores do Novo Testamento demonstram uma profunda resistência ao erro teológico divulgado por mestres. Não podiam ficar silenciosos diante do crescimento dos mesmos nas comunidades cristãs. Assim, tomaram da pena para escrever, denunciando, alertando e encorajando.
O tom dos autores bíblicos quando tratam de desvios do corpo doutrinário recebido é de urgência, preocupação e de alerta. Não há concessão, tolerância ou complacência. A diferença entre as duas atitudes é que, quando se tratava de erros práticos cometidos por crentes, os escritores do Novo Testamento adotam uma abordagem tolerante e pastoral.
Mas, quando se tratava de ensinamentos de mestres que se afastavam do padrão doutrinário recebido, a atitude passava a ser de inflexibilidade. Os apóstolos tratavam com paciência desvios práticos no culto e mau uso dos dons espirituais (o caso de Corinto), mas rejeitavam veementemente o que determinados mestres ensinavam, como a salvação pelas obras da Lei (Gálatas), negação da ressurreição dos mortos (1 Coríntios 15), ensinamentos estranhos sobre a pessoa de Cristo (Colossenses e 1 João), antinomianismo ou barateamento da graça (2 Pedro e Judas).
3. As Exortações para que a Sã Doutrina Seja Preservada
O apóstolo Paulo faz referência à "sã doutrina" nas Pastorais, uma clara referência a este corpo doutrinário recebido pela Igreja, o qual funciona como paradigma do trabalho pastoral e das questões doutrinárias, em oposição aos falsos ensinamentos (1 Timóteo 1.10; 2 Timóteo 4.3; Tito 2.1; cf. "boa doutrina", 1 Timóteo 4.6; "sãs palavras", 1 Timóteo 6.3; 2 Timóteo 1.13). O emprego do termo doutrina, portanto, aponta para a consciência dos autores do Novo Testamento de que havia um conjunto de verdades reveladas que formavam um conjunto definido, que teve seu início no ministério de Cristo e que foi confiado à Igreja mediante os apóstolos.
Doutrina é verdade transmitida de forma autoritativa e recebida em confiança. Os escritores do Novo Testamento também percebiam que a Igreja não somente era a depositária da revelação de Deus, a sã doutrina, mas também a responsável por preservá-la. Paulo considera a Igreja como sendo "coluna e baluarte da verdade" (1 Timóteo 3.15). A tarefa de guardar a verdade era dos cristãos em geral, como Judas escreve "Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Judas 3).
Paulo determina aos crentes de Filipos que "preservem" a palavra da vida, uma referência ao ensinamento que lhes havia transmitido (Filipenses 2.16). Porém, era primeiramente um encargo dos pastores e presbíteros fiéis, cuja responsabilidade seria de defender a verdade e combater o erro.
Assim, além de denunciar os falsos mestres e suas idéias, os escritores do Novo Testamento também ensinam que os cristãos – especialmente os pastores e presbíteros – deveriam zelar e preservar o conjunto de verdades reveladas que eles haviam recebido através dos apóstolos, evitando que as mesmas fossem corrompidas pelos erros velhos e novos. Muito embora usado de forma pejorativa em alguns círculos, o termo "guardiões da sã doutrina" cabe perfeitamente neste contexto para definir aquilo que os escritores inspirados desejavam que os cristãos fossem.
4. O Conceito de Apostasia
Uma outra evidência de que os autores do Novo Testamento trabalhavam com o conceito de um corpo doutrinário definido é a consciência que demonstram da realidade da apostasia. Apostatar, no Novo Testamento, é afastar-se de Deus como resultado de uma mudança de pensamento, e levantar-se em rebelião aberta contra Ele e contra a sua verdade revelada, com o objetivo de pervertê-la.
Os escritores do Novo Testamento continuamente advertem os crentes quanto aos perigos da apostasia. A presença do conceito de apostasia nos seus escritos por si só depõe eloqüentemente a favor da idéia que os escritores do Novo Testamento operavam a partir da convicção de que havia verdades fixas, desviando-se das quais as pessoas colocavam em perigo sua própria alma.
Em suas cartas, Paulo freqüentemente trata do assunto. Aos Tessalonicenses, por exemplo, Paulo relembra o surgimento da apostasia, substanciada na aparição do anticristo, precedendo o fim (2 Tessalonicenses 2.3). O apóstolo descreve este evento futuro em termos de um desvio e rebelião contra a verdade. Note as palavras e expressões destacadas: "Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com todo engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos. É por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira" (2 Tessalonicenses 2.9-11).
O conceito de apostasia ocorre também em outros autores. A carta aos Hebreus parece ter sido escrita exatamente para impedir a apostasia de seus destinatários. Tiago também menciona cristãos que se desviaram da verdade e que correm o risco da morte da alma (Tiago 5.19). João faz uma distinção entre o pecado não para a morte e o pecado para a morte (1 João 5.16-17), que consistia no abandono da doutrina apostólica para seguir o ensinamento dos mestres gnósticos que estavam se infiltrando nas comunidades da Ásia (1 João 2.18-26; 4.1-6).
Os exemplos acima demonstram que os autores bíblicos trabalhavam a partir de um sistema doutrinário referencial, que permitia advertir contra a apostasia. Por definição, só pode haver apostasia se existir um referencial doutrinário, pelo qual se possa aferir se há desvio ou rebelião. Se não havia um sistema doutrinário revelado, definido e autoritativo nos tempos da Igreja apostólica, também não poderia haver desvios, deserções, rebeliões. Tais casos seriam interpretados somente como variações e complementações do ensinamento de Jesus e dos apóstolos.
5. A interpretação das Escrituras do Antigo Testamento
Mencionaremos brevemente ainda um fator, que é o uso que os escritores do Novo Testamento fazem das Escrituras do Antigo Testamento. Eles consideravam o Antigo Testamento como sendo a inspirada Palavra de Deus e usam-na abundantemente em seus escritos, via de regra, com o propósito de fundamentar os seus ensinamentos.
Dois pontos são relevantes aqui. O primeiro deles é que os escritores do Novo Testamento consideravam a sua interpretação do Antigo Testamento correta e a dos judeus errada. Isto teve início com o próprio Jesus, que corrigiu a interpretação tradicional da Lei feita pelos fariseus (Mateus 5.21-22, 27-28, 33-34, 38-39, 43-44), denunciou a interpretação deles como sendo uma distorção da Palavra de Deus (Mateus 15.1-9), acusou-os de desconhecer as Escrituras (Mateus 15.29) e de torcer o sentido delas em benefício próprio (Mateus 23.4, 16-22).
O segundo ponto é que havia vários outros grupos e indivíduos interpretando o Antigo Testamento na época em que o Novo Testamento foi formado. Os essênios tinham elaborado sua própria interpretação da Lei e dos Profetas e escrito diversos comentários sobre livros do Antigo Testamento. Havia outros judeus que interpretavam o Antigo Testamento a partir de suas convicções apocalípticas, que incluíam pessimismo quanto ao mundo presente, o irromper súbito, catastrófico e inesperado do Reino de Deus.
Eles mesmos produziram literatura que era conhecida na época em que o Novo Testamento foi escrito, como por exemplo Enoque, Assunção de Moisés, 4 Esdras. Os rabinos também tinham seu próprio sistema interpretativo substanciado na tradição oral, que remontava ao tempo de Esdras. Filo de Alexandria, anos antes dos apóstolos, havia escrito comentários sobre o Antigo Testamento, especialmente sobre Gênesis, usando um sistema de interpretação definitivamente alegórico e comprometido com o platonismo.
Todas estas interpretações eram conhecidas e correntes no mundo em que os primeiros cristãos viveram. Entretanto, se distanciaram de todas elas, por considerarem-nas como interpretações ilegítimas das Escrituras, visto que não partiam da chave hermenêutica que destrancava o sentido delas, que era Cristo.
Concluindo, transparece das evidências acima que não faz sentido dizer que os apóstolos e demais autores do Novo Testamento eram pluralistas ou inclusivistas, mesmo no sentido mais brando e suave dos termos. Eles não entendiam que as teologias dos judaizantes, gnósticos, nicolaitas, espirituais, latoeiros, etc., eram interpretações complementares e válidas da pessoa e da obra de Cristo. Combateram-nas veementemente. Tal abordagem ao conceito de verdade e pluralidade deveria servir de modelo para uma postura cristã moderna quanto à diversidade teológica que grassa em nossa academia.
Fonte: www.teologiabrasileira.com.br
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