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EINSTEIN E OS CAMINHOS DA CRIAÇÃO parte 1

A cosmogonia judaica e o conceito espaço-tempo - em Gênesis 1

Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï [La Pensée Juive et L'Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie (Paris: Presses Universitaires de France, 1966) 1], existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo e fecundo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia cristã, já que a partir dela podemos entender melhor a realidade de Gênesis Um.

No começar Deus criando o fogoágua e a terra.
E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água.
[Tradução de Augusto de Campos in Bere'shith, A Cena da Origem, SP, Perspectiva, 1988, p. 45].

O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a letra para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que "o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber por que e como" [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7]. Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico, que não implica na inesgotabilidade do texto sagrado. Produto não inspirado, esse texto, fruto da inteligência e arte de um homem, pode ser percorrido por outro homem em sua totalidade, arrancando do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição, interpretando-o com tal maestria e clareza quanto poderia fazê-lo seu próprio autor. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

Interpretar o texto bíblico, decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume a um homem ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Deus criador apresenta mais conteúdos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto houver história: a revelação do que é perfeito dá-se através de um instrumento imperfeito, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado. "A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial". [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, SP, Perspectiva, 1982, p. 342].

Exatamente, por isso, parto do pressuposto de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos apresenta uma hermenêutica bastante criativa do Gênesis Um. Essa hermenêutica ou midrash não ficou restrita aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

Albert Einstein era judeu, acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito bíblico de Deus pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. "As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade". [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 240-241].

DO TZIMTZUM AO PROCESSIO DEI AD EXTRA

Apesar de seus matizes, o judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um, a defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.
A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença divina, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25:10, Lev. Raba ao Lv 23:24; Pessikta de Rab Kahana, Ed.
Buber 20 a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut (1899), f. 15b, citado por Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 263].

Infelizmente, as duas expressões, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passa a dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.

Dessa maneira, o próprio Luria, apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal expositor dentro do misticismo judaico do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de Deus.

"No princípio (Gênesis 1:1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo". [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605]. Apesar de sua riqueza teológica, não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram necessário descobrir o que há de divino nos fenômenos do cotidiano.

Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica, vê a criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites, ele faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor divino e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.
A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a "Explanação dos Mandamentos", de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

"No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: 'Ele formou a luz e criou as trevas' (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: 'e criou o vento'. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1:3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação" [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, in J. Guinsburg, op. cit., p.309]. Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro grande teólogo judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

"Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial". [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo in J. Guinsburg, op. cit., p. 316].

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. "(...) continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por um certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito." [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: "No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã..." E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: "Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal" [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].

A DIALÉTICA DA ESTRUTURA E ACIDENTALIDADE

Dessa maneira, tanto para expositores da creatio ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

"A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos". [Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 248].

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como "o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma" [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199].

E dois escritos antigos nos mostram que a doutrina da creatio ex nihilo tem suas bases tanto no Tanach, como apócrifos intertestamentários. Lemos em Isaías: "Assim diz Iahveh, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Iahveh, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo?" (Is.44:24). E em II Macabeus 7:28: "Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma". Esta, aliás, é a primeira afirmação explícita da criação ex nihilo.

A primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo de Deus apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva muitos a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está "envolto e fechado" precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que Deus, ao criar a natureza, colocou-se com administrador das leis criadas. Daí conclui: "Quando a Escritura afirma que 'Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)' indica uma função que traz consigo sucessão de tempo" [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, in Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explica que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: "a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa" [Idem, op. cit., p. 345]. A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que é Deus quem moveu circularmente "a celeste matéria de todo o planetário vórtice", obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, "isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas". A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, afirma Moro, "comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados" [Idem, op. cit., p. 347]. É interessante ver como a física do século vinte, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela grande maioria dos físicos atuais, levanta algumas hipóteses simplesmente impressionantes, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publica a sua teoria da relatividade geral, com novas e surpreendentes previsões: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

"(...) estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral". [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein vai mostrar que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz era a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.



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